sexta-feira, 7 de maio de 2010

A estória do gato e da lua

No princípio era um negro absoluto. A imensidão calma da noite. Depois ela surgiu e tudo mudou. Há muito que deixei de procurar. Agora tudo é mais calmo. Aprendi que é melhor esperar, ela virá quando puder ou quando quiser. Sei que um dia virá ter comigo. Senão vou passar horas a fio, noite inteiras a observar-lhe. Nada mais importa. Eu espero.

Mas nem sempre foi assim. Depois de a conhecer minha vida mudou. Procurei segui-la. Por ela atravessei mares, corri oceanos. Cheguei mesmo a andar a deriva. Tanto fiz pra a encontrar. Quando julguei estar perto, estava ainda bem longe. Me senti perdido sem saber o que fazer. No meio de tanto mar. O barco tornava-se cada vez mais apertado, o mundo cada vez mais pequeno pra toda aquela paixão.

Foi então que mudei de vida. Arranjei casa, e confortavelmente instalado, julguei irrecusável a minha proposta. Mas de novo ela fugiu. Desesperado então fui de telhado em telhado atrás dela, escravo daquele desejo, prisioneiro daquela atração que pouco a pouco me deixava cada vez mais só.

E o tempo passou. Agora já não corro. Espero apenas. O resto não importa.
Realização: Pedro Serrazina

E eis que numa noite dessas de surpreender aos mais acostumados, ela aparece e o toca. Ele se espanta em ver sua beleza tão de perto. Mal a reconhece e não pensa duas vezes em tocá-la, e a acaricia, e se sente feliz com aquela possibilidade. Tão feliz, tão feliz, que ele começa a subir pelo seu corpo e já quase não se distingue quem é quem. E os dois se envolvem e ela o leva, e nesse carinho, os dois se tornam um só, resplandecente.

Oh, gato, volta pra mim. Volta pra tua casa. Eu sei que a lua é bonita, mas é triste demais não ver-te quando chego em casa. Vida minha, amorzinho meu, volta pra mim. Não demora, não. Diz pra essa lua que a tua mãe o espera e que é preciso ir. Toma cuidado, meu gato preto. Longe de mim querer possuir-te, mas apenas desfrutar da tua presença como sempre fazíamos. Vem me tagalerar, vem me acordar, vem porque essa casa precisa de você.

Porque o choro dói mais quando se está sozinho.
Porque os gatos sabem quando um amor é pra sempre.

anti-Interior Desing-Tokyo-Michel Gondry

Eu quero poder merecer ser útil pra mim. Eu quero deixar de ser, pelo uma vez, quem sabe, e não me chamem de pessismista, menos azarada. Quero ser mais útil que uma cadeira, mas para mim, não para eles. Quem são eles? Quem eles pensam que são? E que importa? Eles estão fodendo. E eu sou apenas uma cadeira. E ainda existe gente tão fútil nessa vida, que tem como sonho ser tão útil quanto uma cadeira. São os afortunados e os desafortunados.Tão substituível quanto uma cadeira. Ter que ser tão fria quanto uma cadeira, quando há tanta coisa que posso oferecer, tanta paixão, tanta vontade... Mas eles não estão nem aí. Você recebe pra ser uma cadeira. Porte-se como uma! E assim vai ser, e acho que até o fim. Do começo ao fim, sem dó, nem piedade, só transtorno, só contratempo, só trauma, e é isso.Vai saber se não é por isso essa minha transitoriedade, essa mudança constante. Vai saber... nem o tal do Freud, muito menos ele. Eu só quero ir embora. Minha mãe me deixou aqui, com essa gente estranha, mas eu não quero ficar. Quero ir embora. Quero voltar pra onde nunca deveria ter saído. Por que eu tenho que ficar? Por que não posso ir? Qual o problema? Coragem, menina, vai embora. Isso aqui não é pra você, nunca foi.

Terra Santa e Desgraçada

Aquela que me acolheu, me fez crescer, me fez sofrer.
Como a uma mãe, contraditório ser humano, critiquei-a, te chamei de mal gosto, mal gosto, mal gosto, mas vivi nas tuas veias, sorvi do teu seio. Devo lá ter feito algo por ti. Se a batida da asa da borboleta causa tufões, alguma coisa eu fiz, pro bem e pro mal. Mas eu bem me conheço, te fiz bem de alguma forma.
Me apresentou teus filhos. Emprestou-os para mim. Uns eu cuidei. Outros me cuidaram. E a gente se apoiou dessa forma. Mesmo que muitas vezes de uma maneira torta, caótica, um tanto medíocre e hipócrita, mas sempre com atrito e palavras, o que é mais importante.
E então, uma peça de finda. Fecho as cortinas, desmonto o palco e saio. É a minha deixa. Volto pra minha terra, de onde, às vezes, pensava que nunca deveria ter saído. Mas, que seria de mim sem você, Mogi.
Ah, Granada, terra santa e desgraçada.Mogi, terra do Rock.
Metrópole de gente caipira. Velhos costumes, velhos hábitos. Eterna província. Por que destruiu tua história, Mogi? Por que derrubou tuas casas? Por que destruiu os teus índios? Mas quem somos nós? Novamente eu te critico, mas como a uma mãe que jamais entenderemos.
Portanto, de todo modo, venho por meio deste agradecer a todos os que conheci nessa cidade. Todos foram importantes, sem sombra de dúvida. Levo todos em minha memória e em minha agenda telefônica.Saio de cara certa, de consciência limpa, de mãos livres e já com saudade no peito. Daquelas manhãs vilajoianas frescas e solitárias, daquelas crianças, daquela companheira.
Daquelas tardes sãosebastianas verdes e entristecidas, daquele sofrimento, daquela cachorra, daquele pai. Daquelas noites vilavitorianas saudáveis e marcantes, daquela amizade, daquela família, daquelas risadas, daquelas barbas, daqueles filmes, daquelas madrugadas, daquela soja, daquele queijo, daquelas músicas, daqueles gatos.
Daquelas madrugadas insones, daquele chico science, daquele MP3, daquele vicioprimaveril, daquelas saias, daquelas mulheres, daquele homem azul, daqueles enxergadores de alma, daquela mandala, daquele elvis, daquele cine saleiro, daquele cine canteiro, daquele café, daquelas tequilas, daquelas cachaças, daqueles amigos secretos, daquele Michel, daquela Aline, daquela Sheila, daqueles malditos artistas insones.
Daquelas noites brascubanas, daquelas pessoas brascubanas, daqueles sonhos universitários, daquelas críticas, daquelas risadas, daquela Juliana, daquela Ananda, daquele Maurício, daquela Anna, daqueles professores, daquelas manhãs de sábado, daquela lanchonete da arquitetura, daquelas brigas, daquele nosso banquinho.
Daquele bar, daqueles shows, daquelas bandas, daquela cena, daqueles amigos, daquela portaria, daquela cerveja, daquele banheiro.
Daquelas tantas coisas que não me esqueço. Foi muita vida em pouco tempo.
A ti, o meu amor e o meu adeus.
Não há ato mais apaixonante do que ler. Quando a gente lê, entra na mente de quem escreve. E a catarse é forte, capaz de criar toda a atmosfera do que está escrito. Quando leio algo novo e bom e apaixonante, de alguém que ainda não conhecia, tomo-o para mim de tal forma, que ninguém jamais me tirará. Isso a gente realmente possui. Agora quero mais. Obrigada à flor de laranjeira mais cheirosa que já encontrei, que me apresentaste Caio Fernando Abreu. Me falaste tanto dele, e eu nem aí... tsc, pobre de mim por ter cometido tamanho desdém ao não ter procurado-o assim que mo tivesses falado. Mas eu sabia que, vindo de pessoa de tão bom gosto, não poderia ser diferente. És a flor esquisita e bagunceira que chamaste a minha atenção. És o excesso de vida rodopiando ao meu redor. Aquela criança serelepe que não para nunca, que corre, que grita, que enche de alegria a casa, e que nos cansa com tamanha energia, mas é de um cansaço renovador. À contraditória e apaixonante Lolita... que nem tudo é efemeridade.

Da arte de ser clown

Porque somos todos clowns. Ainda somos aquela criança que pinta e borda para chamar atenção. Alguns esquartejam, outros mentem, outros ainda sorriem, mas todos amam. Todos fazem de tudo para que olhemos. É um espetáculo e tanto.

Das vantagens (ou des) de ser um palhaço

Breve intro O palhaço cultiva a alegria, independente do estado das coisas.Canta, dança, celebra a vida como ela é: torta, sangrenta, caótica, duvidosa.Tem o dom de rir da desgraça. Tem a sede de abrir um sorriso no rosto daquele que chora.Meu menino e minha menina têm me ensinado as dádivas de ser um clown. Mesmo contra minha vontade, sou um clown. Mesmo contra nossa vontade, somos todos clowns.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Danço eu, dança você

É preciso definir-se. Não há meio termo: ou se está só, ou se está acompanhado. E o que é estar acompanhado? O que é estar com alguém? E a gente vai descobrindo que cada um tem um conceito diferente de solidão, de amor, de amizade. A arrogância nos cega e não nos permite perceber isso. E a descoberta é feita a duras penas. Ainda que tardia, é extremamente necessária. É importante perceber o quanto somos esgoístas. E que fique assim, bem definido, que a solidão te acompanhará. Por um bom tempo, ao menos, pela vida inteira. Que nem teus filhos te darão a companhia que precisa. Eles, na primeira oportunidade, ganharão o mundo, independente do que tenha feito. Você já teve a oportunidade de não estar sozinha algumas vezes, e jogou fora. É e não é sua culpa. Você podia ter escolhido, podia ter sido mais forte que os seus problemas. E hoje você tem que se ver sozinha, dependendo de um conceito de amor completamente diferente do seu, inverso até, quem sabe. Na verdade, nada se sabe desse amor calado, que às vezes grita que quer ficar pra sempre ao seu lado. Mas que, na maioria das vezes, contenta-se com si próprio. Portanto, que seja assim, bem definido na sua cabeça, para que não tenha mais que se preocupar ou sofrer com isso. Foi a tua escolha, arque com ela. Contente-se, conforme-se e cale-se. Tente ter um filho ou dois. Ganhe dinheiro, e passe o resto da vida a observar. É sua a culpa, é dele a culpa, são um monte de culpados se relacionando e se deteriorando. Essa festa de Atlas, na qual você nunca é convidada e nunca sabe do que se trata.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

A garota do trem

(Marcel Bittencourt)

Eu estava na plataforma esperando o próximo trem sentindo Guaianases chegar. Eu estava ouvindo Read My Mind no music player do meu celular. Um tanto arriscado, nos dias de hoje. Pensava na minha situação financeira, que não estava indo muito bem, mas fazer o quê. A culpa era, de fato, minha, que não fazia muita coisa para mudar isso. O assunto passou para minha vida em geral. Mais especificamente, o quão vazia era minha vida. E se eu me jogasse na frente do trem? Um espetáculo e tanto. Mas não queria quebrar meu celular. Tinha custado caro e eu sou muito apegado a essas parafernálias tecnológicas. Mas eu vivia uma vida medíocre, sem grandes ambições, sem um grande amor. Corpos passaram pelo meu, mas nada que valesse a pena lembrar naquele momento. Foi então que eu percebi que uma garota próxima a mim. Garota, sim... Tenho síndrome de Peter Pan, porque ela tinha cara de uns vinte e três a vinte e seis anos... Já era mulher, mas pra mim, menos de quarenta, garota. Ao som de Chico Buarque (sou bem eclético), comecei a observá-la. Destacava-se do resto exatamente por sua simplicidade. Em um mundo onde a vaidade reinava, um rosto sem maquiagem, uma blusa sem decote ou pernas escondidas era algo que realmente me chamava atenção. Ela olhou pra mim, surpresa com o fato de eu estar encarando-a e virou o rosto. Quando você me deixou, meu bem, me disse pra ser feliz e passar bem. Mas, por algum motivo, não conseguia parar de olhar pra ela. Tsc. O trem havia chegado e entramos. Era sábado e não havia milhões de pessoas se acotovelando, travando batalhas titânicas por um maldito assento. Esperei ela sentar e sentei em um banco na sua frente. Nesse ponto, ela já estava bastante incomodada com a situação. Olhou para um lado, depois para outro, procurando um outro lugar para se sentar, mas desistiu da idéia. Creio que ela achou que seria muita bandeira, sei lá... Bom, tenho certeza que não lançava-lhe olhares cobiçosos... Pelo contrário, era um olhar curioso. Fiquei realmente curioso pra saber por onde ela já esteve. O cenho franzido, como se tivesse sido forçada a ser dura durante a vida. Tão diferente das ninfetinhas que sorriam e gritavam e gargalhavam e comentavam sobre suas últimas empreitadas sexuais e como seus supervisores eram uns escrotos e como elas conseguiriam uma promoção na operação caso aceitassem os convites libidinosos dos seus gestores e essa vida de telemarketing que é igual diarréia: todo mundo já teve a desagradável experiência de passar por isso. E nos fones, Lou Reed dizia Hey babe, take a walk on the wild side. A saída perfeita para fugir do mundo, especialmente eficiente em transportes públicos: ler. A garota tirou um livro da mochila e começou a ler. Saramago. Jangada de Pedra. Bom, por algum motivo, tinha certeza de que não seria Crepúsculo ou Paulo Coelho. Ela diferenciava-se da massa. Se eu pudesse enxergar a aura das pessoas, ali, mesmo não estando o vagão lotado, eu veria um borrão cinza e um pontinho azul. Ela seria o pontinho azul. Comecei a analisar os detalhes. Peguei minhas coisas, fui embora, não queria mais voltar, eu nunca quis presenciar o fim. Minha “ecleticidade” chocava até os mais puros. Sua mochila era grande e parecia pesada. Final de semana... Para onde ela estaria indo? Para São Paulo? Trabalho? Passeio? Encontrar no namorado? A namorada? Não havia aliança em sua mão. Na verdade, nem anel. Vaidade é para os fracos. O que tinha na mochila? Roupas? Livros? Um revólver calibre '38? Era a cara dela, levantar meter cinco balas em cinco lixos humanos e depois uma azeitona no própria cabeça. Bom, pelo menos eu gostaria de fazer algo assim. Pelo menos o celular ficaria intacto. Ou não, um maldito ladrão poderia roubá-lo enquanto eu estivesse inerte no chão. Sei lá, hoje em dia se vê de tudo. Esse mundo é uma Roma imperial moderna. Leões e cristãos. Brasil, o maior Coliseu da terra. Um estojo com itens de higiene como escova de dentes, absorvente, creme dental, pente e coisas assim? Ela parecia ser asseada, independentemente de sua simplicidade. Um maço de cigarros, talvez. Será que ela fuma? Eu estava com uma vontade louca de fumar. Maldita lei anti-fumo, que não permitia mais se fumar nas estações de trem. Roupas, definitivamente roupas. Ela estava indo encontrar o namorado. E a namorada. Que vida. Será que ela usava lingerie provocante? Uma calcinha de renda preta, um chicotinho de couro? Dominadora, talvez. Eu deveria me levantar e ir sentar-me ao lado dela. Qual seu nome? Pela idade, provavelmente Fernanda, Fabiana, Mariana, Talita ou Bárbara. Mas antes que eu tomasse qualquer decisão, um maldito obeso com cara de tarado sentou-se ao lado dela. Aqueles braços roliços, roçando “sem querer” contra os dela. Se eu tivesse uma katana, deceparia aqueles dois objetos nojentos que ele usava para levar suas mãos, segurando um Super Big Mac, à boca. Percebi que ela também se sentiu enojada. Eu queria aquele '38 pra enfiar as seis balas na barriga do gorducho. Tire suas mãos da minha garota, seu porco! Minha garota, rá, essa é boa. Sente-se aqui do meu lado, Fernanda. Vamos falar sobre literatura, cinema, música e a política mundial. Sabe, Fabiana, acho que eu te amo. Diga-me, Mariana, você quer ser minha namorada? Que notícia incrível, Talita, você está esperando um filho meu? Cuide dos nossos netos após minha morte, minha querida Bárbara. Uma família, uma vida. Ter motivos para acordar de manhã, enfrentar o mundo, juntar dinheiro, casa, carro, filhos, cachorro, gato, TV de 42 polegadas, home teather, X-Box 360. E o que ela está achando das peripécias de Joana Carda? Teria tido dificuldades para se acostumar ao estilo do Saramago ou, assim como eu, achou tranquilo? O que mais ela lê? Sartre? Maquiavel? Sêneca? Cristã? Agnóstica? Atéia? Republicana? De esquerda? Anarquistas? Mãe? Virgem? Bissexual? Diabética? Desenhista? Quem é você, garota? O que eles te fizeram? Senta aqui e me conta. Eu te protegerei. Minha Alabama. Bom, agora que encontrei o amor da minha vida, nada mais me falta. Ficaremos ricos juntos. Quando a 3ª Guerra Mundial estourar, seremos os únicos sobreviventes. Mas faremos diferente de Adão e Eva. Nossos filhos serão puros, serão ateístas. Criaremos uma sociedade onde não será necessário dominar no mínimo quatro artes marciais para se conseguir sentar no trem. Onde não existirá plaquinhas de Lei Estadual Nº 12.225/06. Você chamará meu nome enquanto dorme e eu ter abraçarei, velando seu sono. Uma casa com gazebo, limonada no portão, seriados até de madrugada. Um café e planos de fazer um filme. Pizza de sexta-feira e sexo embaixo do edredom. Fumaremos deitados na cama enquanto você me conta como foi seu dia. Uma bolha mágica, protegida pelos maiores arcanos de Devon. Ciúmes das nossas relações anteriores. Quanta bobagem, é só você que eu amo, garota. Vamos descer na próxima estação e ir no cinema. Vamos comer pipoca e tomar Coca-Cola. Deixe seus namorados pra lá, temos que estudar pra prova. Tantas coisas para fazermos juntos, e você aí, lendo Jangada de Pedra. Bom, é aqui que eu desço. Espero que você fique bem. Beijos e saiba que sempre te amarei, minha garota do trem.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Lucy's letter

pic by Fabiana Rangel

quinta-feira, 18 de março de 2010

Esquilo Não Samba

Móveis Coloniais de Acaju Composição: Leonardo Bursztyn

Muito prazer
Eu sou você amanhã
Só não me apresentei antes
Por medo de desmotivar
Eu sei que é triste
Mas não se deixe abalar
Terás dias bons
Cujo número eu posso contar
Muito prazer
Eu sou você amanhã
Só não me apresentei antes
Por medo de desmotivar
Não vou mentir
Na sua média você será
Medíocre
Não vou mentir
Não sua média você será...
Mediocridade
Eu sei o quanto eu sinto saudade
Mediocridade
Eu sei o quanto eu sinto saudade
Do tempo em que eu me achava esperto
Do tempo em que eu esperava dar certo
Do tempo em que eu me achava
Não quero te iludir
Não quero te enganar
Não quero te iludir
Você está
Desperdiçando o que era pouco
Muito pouco, quase nada
E está para acabar
Acabar

segunda-feira, 15 de março de 2010

Da prole

"...Então a biosfera inteira, agonizante, finalmente em seus últimos recursos, implorou àquele ser vil e arrogante, àquela bactéria infecciosa, prole de seu próprio ventre; implorou e agonizou por piedade. E aquele ser repugnante instituiu: "Não!", disse ele. "Não terás a minha piedade: já está decidido. Já foi declarado, registrado, homologado, anexado e arquivado; nossa condição é simples e clara: eu serei a hiena, e você será a presa agonizante em minhas mandíbulas..."


...


Da arte de ser clown.
Da arte de fazer rir por meio da dor e da tristeza.
Das vantagens de ser comer o prato frio.
Da prole de seu próprio ventre ao doentio criador.


Ei.
Faz-me sentir o melhor de mim.
Faz-me perceber o que há para ser sorriso.
Faz-me ser inspiração e produção.
Adentraste silenciosamente nesse mundo inverborrágico. Adentraste silenciosamente no paço das palavras.

terça-feira, 2 de março de 2010

meio mosaico

Mas a vida está nos silenciando aos poucos. O vento está soprando e a sensação de estar numa corda bamba sempre esteve. Não estamos bem e isso não é de hoje. Estou chegando à conclusão de que a nossa doença é degenerativa, crônica e psicológica, e parece estar em grau avançado. A vida está nos silenciando. Conseguiram nos convencer da nossa loucura e nós sempre nos enganando, nos dizendo sãos. Maldita seja toda tentativa de estar bem, porque não tem êxito e só nos faz mais loucos. Preciso me reconectar com o meu eu. Preciso tirar o cimento do ralo. Preciso sair desse lugar o quanto antes. Não há lugar pra mim nesse espetáculo. Nunca houve. Daremos uma festa para um palhaço que não foi convidado. Ainda assim ele ri, como, bebe, dança a peça dos convidados. Esforça-se para fazer graça, mas sabe que ninguém ali se interessa de fato. Como já foi dito, é um espetáculo, ele não foi convidado, e todos estão encenando... a todo instante. E somente o palhaço não sabe. E ele vai tentando do tragicômico ao desespero. E se acha tomado de uma insanidade incomum. Porque ele não soube ser inconstante e borboleta. Ele tentou, mas essa foi a única hora em que riram dele, desengonçado e sem graça.

segunda-feira, 1 de março de 2010

canopy glow

Joana Carda corre para além-mar, a península se afasta, e ela nem está tão atordoada assim; não como os outros. Joana Carda sabe o que passou até chegar ali, e cada um sabe a dor que lhe apetece. Cada um guarda o gosto da dor que lhe faz bem, e Joana Carda está ali por ter-se agastado. Em breve Agastar

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Meia metáfora



   Um dia eu tive uma filha. Ela era tudo pra mim. Ela não saiu de mim, mas era como se tivesse. Eu era criança com ela; eu era a melhor tia-mãe do mundo. E a vida nos separou, eu me separei, e ela sentiu muito, chorou doído, de um choro que eu jamais vou me esquecer. Ainda carrego a cicatriz no peito, do rasgo causado por aquele choro... Mas a vida tinha que seguir. Justamente por ela não ter saído de mim, por mais que eu quisesse, não tinha o direito de tê-la pra mim. Ela jamais seria pra sempre e oficialmente minha (sim, eu era jovialmente egoísta). Pois a verdadeira dona fazia questão de me lembrá-lo. Isso não diminuiu o amor que eu lhe tinha, pelo contrário. Mas me fez acordar para algo mais (ou me fechar para algo julgado menos); esse triste fato me encorajou a tomar a decisão de ir embora. E eu fui.   
    E o tempo passou, e eu me lembrava dela como um filho natimorto. Um filho perdido do qual eu sempre senti falta.
    E aí, após alguns anos, eu a reencontrei, não pessoalmente. Nós conversamos, nos atualizamos. Conversas sobre as trivialidades, evitando tocar em assuntos delicados. Comecei a perceber que ela se divertia intimamente, pois aos meus comentários sobre as nossas brincadeiras, inesquecíveis para mim, ela respondia que nada lembrava. Aquilo foi de uma frustração tamanha; era como se a visse me olhar com um sorriso ingênuo a segurar um punhal. Foi então que a minha confissão da falta que ela me fazia, da saudade que eu lhe tinha, suscitou na pergunta rancorosa: Então por que fostes embora? Senti o fel de cada de palavra. Palavras que saíram de uma criança. Isso não é uma metáfora: ela realmente era uma criança. E eu lhe perguntei: Não te disseram? Ao que ela respondeu: Sim, mas quero ouvir de você. Senti o punhal ser enterrado em meu peito, senti a crueldade vindo dela no nó da minha garganta, que jamais imaginei sentir... uma criança. A minha criança... meu natimorto que resolvi ressuscitar. Antes a tivesse comido como a Alice o fez. A desmorte é pior que a morte. Com a morte se convive melhor, porque é fato, acabou, não tem mais volta.
    Explicado o motivo, mais crueldade. Não bastou pr’aquela criança apunhalar o meu coração. Era preciso girar o punhal: Foi quase igual ao que me contaram. Eu, num grito de misericórdia: Mas e você, o que achou de minha partida? Quer conversar? Quer desabafar?. E ela, num meio riso: Me poupe. E o punhal girou. E ela os chamou, e todos riram de mim, da minha dor, do meu rasgo exposto.
    Causei-lhe dor ao ir embora; acho que a dor do seu choro doído somou-se ao que lhe disseram sobre a minha partida. E aquela criança teve a sua vingança.
    Criança não tem pudor, não discerne entre cruel e não cruel. Tudo é lúdico para a criança. Se ela vai perceber o que fez quando o imaginário acabar, jamais saberemos, mas é o que a minha crueldade reflexiva espera.
    Eu ressuscitei meu natimorto e ele quis levá-lo consigo. Não devia tê-lo acordado.
    Não acordem, não despertem o amor.
    Mas eis-me, guerreiro caído, quase morto como o meu bebê um dia esteve. Mas me ergo, sei de onde eu vim, apesar das investidas de tentar me fazer esquecer. Sei do que é feito o meu sangue. Afirmo isso para mim mesma. Levanta-te, mulher. Mostra-te a mulher que sempre foi. Ergue a cabeça e segue. Teu verdadeiro filho a espera lá na frente.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

canting

Quando eu era rígida, quando eu odiava com todas as forças da minha alma a hipocrisia e a mediocridade, falavam mal de mim. Diziam-me intransigente, insípida.

Quando eu passo a agir como a massa e sigo a cuidar do que eu quero, do que me faz feliz; quando eu deixo pra trás esse ódio inválido, falam mal de mim.

Opa, é a especialidade da casa: pegar um pra santo cristo (não que eu me considere um mártir, não mesmo) e jogar pedra.

Afinal, é preciso escandalizar o outro, apontar para o outro, para que seus defeitos não sejam mostrados.

Não que eu me importe, mas faz-se necessário vomitar-lhe o pão bonito por fora e bolorento por dentro. É a mania de se ludibriar com essa beleza instantânea, quase que espontânea. É o distrair-se com as peripécias dessas tentativas de fazer-se bem.
Mais ou menos isso.
E mais nada.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

E são perfeitos


Por Fabiana Rangel

Apesar de tudo, existem as palavras

O intuito não é demonstrar. É apenas registrar antes que se perca na confusão mental.

Tem certos pensamentos que se encontra nas páginas de autores. Jamais se prova que aquele pensamento sempre foi pensado, mesmo antes de saber que pertencia a tal autor. Isso acontece, inconsciente coletivo, pós-modernidade, tudo-é-possibilidade, tudo é.

Adentra silenciosamente pelo mundo das palavras.

Sartre adentrou. Passou por entre a biblioteca, escolheu, viveu, chorou e se descobriu. Ele disse que as palavras têm para ele um peso grande. Foi na infância que ele descobriu a embriaguez de se viver palavra.

Elas sempre me tiveram. Eu sempre as tive. Descobri-as antes do tempo que se costuma descobrir. Paixão inata. A palavra é uma das nossas mais belas criações. Temos a possibilidade de darmos o peso que quizermos a elas. De acordo com o tom, a importância. E aí vem a teoria da recepção também. Aí vem também o ruído. Suposição, medo, variedade linguística, lexical. Conotação, denotação.

Fazer-se palavras, criar palavra, estar palavra, sentir palavra.
Dizer a palavra que se sente. Sentir a palavra que se diz.

A palavra que eu te disse. As palavras que abstenho. Tantas. E apenas resumo em um Se você soubesse... Para que você use o nosso sentir e a nossa palavra e abstraia e imagine e delire e aja verborragicamente.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Lei Estadual nº 12225/06



   Alice acorda um minuto antes de o relógio despertar, três horas. A angústia já começa antes mesmo de levantar da cama, é segunda-feira e ela sabe o que a espera. A rotina é feita de cor, sabe até quantos passos são entre uma ação e outra: escovar os dentes, trocar de roupa, comer pão, tomar café, pegar a bolsa, fechar a casa. Uma casa de dois cômodos alugada na favela da praça Amador Avelar, ao lado da linha F de trem e 15 minutos a pé da estação São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo.

   Mas Alice prefere andar até a avenida Marechal Tito e pegar a lotação Cohab II para descer na estação Guaianases, uma outra linha de trem que vai para a estação da Luz, no centro de São Paulo. Lá Alice pode pegar outro trem, o Francisco Morato, descer na próxima estação, a Barra Funda, pegar o trem Itapevi, descer na estação Osasco, pegar o trem Jurubatuba e descer na estação Morumbi e andar apenas mais dez minutos até chegar ao seu local de trabalho. Ao total são quatros horas e vinte e cinco minutos.

   Uma luxuosa mansão no bairro do Morumbi. Com seus 25 quartos, sendo 15 suítes, amplo hall de entrada que se divide em duas escadas com piso de mármore, corrimão banhado a ouro, cozinha industrial, três salões de jogos, duas bibliotecas, quatro escritórios, dez lavabos, corredores secretos, corredores que não acabam mais, piscinas, pra todas as idades e pra todos os gostos, um bosque particular. É a maior mansão da região, com um sistema de segurança impecável. Alice faz parte do quadro de empregados da empresa que cuida de todo o patrimônio, entre os cinquenta funcionários da mansão: quinze seguranças, quatro mordomos, dez empregadas domésticas, cinco cozinheiras, cinco jardineiros, uma administradora e ainda cinco funcionários que cuidam do Departamento Pessoal. Alice é do grupo das empregadas domésticas. Uma mansão que fica praticamente vazia a maior parte do tempo. São cinquenta pessoas para atender a dez pessoas, nos dias normais: o diretor executivo, a mulher, os três filhos, dois irmãos do executivo e mais três crianças, sobrinhos do executivo. Mas a exigência de tantos funcionários é da mulher, que se sente importante tendo que arrumar tarefas pra tanta gente, paranoica com a segurança excessiva da casa. Nos finais de semana costumam vir os parentes, convidados, mas nunca todos os quartos são usados. A comida sempre estraga, mas a maioria é levada a tempo pelos funcionários.

   E Alice já chegou à estação Guaianases. Sente-se mal nesse momento, a chegada do trem, porque é a hora em que a multidão aproxima-se para garantir a entrada. As pessoas começam a se empurrar, os homens, mais fortes, empurram quem estiver na frente. Diversas são as brigas por causa do assento. Alice não sabe o que fazer: se entra na briga, sempre se machuca e dificilmente pega um lugar, mas se espera a manada entrar, tem que se apertar na porta, aonde cada vez mais chegam pessoas empurrando e todos se apertam de qualquer maneira, e ninguém consegue se mexer. Num espaço onde normalmente caberiam duas pessoas, ficam sete ou mais. As mulheres nem pensam mais em assédio, não há nem condições de reclamar do volume do cabrunco apertando atrás, ao lado, à frente. Essa é angústia diária de Alice, que passa nove horas (quatro horas e meia de ida, mais a volta) sendo esmagada por centenas de pessoas.

   Alice vê os bancos cinzas do assento preferencial e escuta o aviso sonoro programado: “Respeite os assentos preferenciais. Eles são identificados pela cor cinza e adesivo”. Vê o adesivo: o gordo, o aleijado, a grávida, o idoso, a mulher com a criança. Vê muitos desses chegarem aos assentos, apesar do enorme esforço contra a multidão, e sentarem-se confortavelmente.

   Alice tem 32 anos, solteira, sem filhos, nem ambições, nem sonhos. A família mora na cidade de Caldeirão Grande do Piauí, quase divisa com Pernambuco. Veio com a tia pra São Paulo há 17 anos, arrumar dinheiro pra ajudar os pais. A tia morreu num assalto quando Alice tinha 16 anos, e na mesma casa mora desde que chegou, e trabalha na mesma mansão que a tia trabalhava. Não quis voltar pro Nordeste, estava acostumada demais com a cidade, mesmo que aqui tenha a mesma miséria de lá, só que de uma maneira diferente.

   Os dias passam com a mesma mecânica, as mesmas repetições. E Alice, no aperto dos trens, continua a olhar os adesivos dos assentos preferenciais. Ela começa a pensar nas possibilidades no banco dos privilegiados. Ela se imagina idosa, sentando-se no seu assento cinza, mas sabe que demorará muito, e não pode esperar tanto, sem falar que estará no fim mesmo. De que adianta sentar agora, se já passou a vida inteira em pé e lhe resta tão pouco tempo de vida? Não, não dava pra esperar.

   Aí ela olha para o aleijado. Bem que o destino poderia causar-lhe um acidente, onde a pobre perdesse um pé ou uma mão. Se fosse o caso, ela mesma poderia cortar um membro, aprendeu alguma coisa num cursinho técnico de enfermagem que fez há muitos anos. Mas não seria nada bom ser uma aleijada, seria infortúnio demais se arrastar por nove horas diárias, não é uma boa ideia. Tem o obeso. Porém o dinheiro que Alice ganha mal dá pra mistura, vai tudo pro aluguel, que só aumenta, fora o que ela perde quando é roubada, o que acontece costumeiramente, seja em qual ponto da cidade ela estiver. Como ela poderia engordar com tão pouco dinheiro? A comida que sobra na mansão é sempre levada pelos pais de família que precisam alimentar sete, oito bocas. Todos considerariam um absurdo uma magrela sem família levar tanta comida pra casa. Com que direito? É, não dá.

   Depois tem a grávida. Alice não tem namorado, não tem ninguém. Já se acostumou a viver só, namorado só atrapalha. Toda sexta, ela vai num pagode do boteco perto de casa, mas só pra beber e arrumar uma trepada. E Alice se previne, porque filho e doença só atrapalham. Pensou que a gravidez também não seria uma boa ideia. Alice percebe que não há jeito, mas pelo menos a primeira viagem chega ao fim sem que ela perceba, e a manada a empurra para fora do trem.

   As semanas passam e a angústia continua. Alice não consegue se conformar com tamanho sofrimento.

   É sexta-feira, dia de ir pro samba. Não que isso a alegrasse, mas ela não trabalha no sábado, e pode beber pra esquecer o trem. Sentada na cadeira do bar, acostumara-se a sentir como que um balanço, semelhante ao balanço do trem, isso nem a incomoda mais. O barulho do samba lhe é também indiferente. O grupo toca ao seu lado, mas lhe parece longe. Ela sempre bebe maria-mole, porque é barata, chapa mais rápido e ela não precisa acabar-se na pinga. Fica olhando pro nada, não dá atenção pra ninguém, até certo momento, em que a bebida já faz efeito, atende ao primeiro que chega perto. Não fica alta, mas se propõe a qualquer proposta. E então, saem de lá e vão para o barraco do rapaz. Já em cima da cama, ainda com o olhar de indiferença, enquanto o desconhecido tira a sua roupa, Alice imagina a satisfação de ir sentada no trem. O balanço do trem que permanece na sua mente, junto ao vento que entra pela pequena janela do quarto, três horas da madrugada e um calor de 29 graus. Alice decide não se prevenir. Não para pra pegar a camisinha na bolsa e o rapaz não toca no assunto. E assim, Alice pensa que seu filho poderia ajudá-la a ir sentada no trem.

   Uma esperança começa a brotar-lhe no peito. Acorda bem disposta na segunda, no justo horário em que o despertador toca, toma café com gosto e nem sente angústia alguma ao pegar a lotação lotada. Alice poderia, um dia, sentar-se durante a viagem.

   Três semanas se passaram e Alice percebe algo diferente no seu corpo. Os enjoos começam e então ela marca consulta no ginecologista, quer ter certeza. Mais duas semanas, na consulta, o médico a examina e, por precaução, pede um exame. Duas semanas depois, ela pega o exame. Está grávida. Mal sai do posto de saúde, pega a primeira lotação que passa, não vê nem o itinerário. Ela só quer sentar. Pro seu azar, nesse horário, não há tanto movimento, não para a lotação que Alice havia pegado. O assento reservado está vazio.

   No dia seguinte, Alice acorda um minuto antes de o despertador tocar. Suas ações maquinais e matinais estão diferentes. Ela está ansiosa para sair de casa. Na esquina onde a lotação para, entra e logo diz ao cobrador: “Estou grávida”. Alice é magrela e apenas uma pequena saliência aparece no abdômen. Ao que o cobrador responde: “Fala aê com os passagêro”. Alice mostra seu exame, segurando com os dedos crispados o papel na altura da visão do cobrador. Apesar da escuridão das três e meia da manhã, o cobrador consegue enxergar o papel impresso em impressora matricial, a tinta fraca e a assinatura do médico.

    Então, o cobrador grita para os passageiros que a moça está grávida e pede pra que alguém dê lugar pra ela. Um homem levanta, apesar de olhar pra Alice de modo desconfiado, aliás, a essa altura, todos olham um pouco desconfiados. Mas era uma atitude por demais inesperada. Ninguém ali faria isso se estivesse grávido ou grávida de poucos meses, pois sabiam que todos desconfiariam. E foi por isso que ninguém reclamou. E Alice sentou sossegada no assento reservado.

   Dali, ela olha o cinza escuro do bairro onde mora. Nos pontos de ônibus, vê um grande número de pessoas se apertando para subir na lotação, que já não cabe ninguém. Ela não está em pé, a satisfação é tamanha que ela não contém um riso. Ainda que pobre, encavalado, um sorriso, que ela tenta esconder, mas não consegue. Aqueles que não haviam participado da reivindicação da moça, por ter subido em pontos posteriores, a olham com cara feia, julgando-a. Então, Alice coloca a mão na barriga, até estufa-a para dar mais aparência.

    Na estação de trem é ainda melhor. Alice nem sofre por esperar as pessoas se matarem para entrar no trem. Ela os observa, atrás da multidão, espera todos entrarem, esbaforidos. Os bancos reservados são os últimos a serem ocupados, porque ninguém quer sentar-se e ter que dar lugar à primeira velhinha que aparece. Alguns, com mais cara de pau, sentam-se e logo fingem dormir, alheios a qualquer pessoa que encosta. Ainda assim, existem os mais caras de pau, recalcados é a palavra certa, que, não conformados com a cara de pau do que dorme, e querendo que fossem eles a estar ali naquela mamata, apenas avistam alguma pessoa preferencial, já chamam-na e acorda o dorminhoco. E não tem jeito, tem que levantar. E Alice logo se senta no seu assento reservado, máxima do seu direito, segurando o papel na mão.

    Uma velha aparece. Alice não levanta e todos a olham com censura, até que alguém diz que isso é uma falta de educação. Mas Alice espera, não diz palavra, decide que só vai falar quando a pessoa dirigir-se diretamente a ela e reclamar. É o que acontece. O papel é mostrado, mas as reclamações só aumentam: “Mas nem dá pra ver a barriga”, diz uma. “É no começo da gravidez que mais se passa mal”, argumenta outra. As pessoas não estão interessadas em saber se Alice passa mal ou não, só querem que Alice saia do lugar. “Não. Estou grávida. É meu direito, assim como o dela, não estão vendo na placa?”. Não há o que fazer, todos a olham torto, mas não há o que fazer. Outra pessoa levanta de um assento não reservado e dá lugar à senhora, que agradeço, mas a essa altura não quer mais sentar.

    No começo foi assim até Alice fazer a sua carteirinha de gestante. Pelo menos na estação da Luz, ela ia até o primeiro vagão, aonde há um espaço para as pessoas com necessidades especiais. Depois do terceiro mês, quando a barriga aparece, Alice nem se preocupa mais. Entra, aproxima-se do assento preferencial e logo o lugar é cedido.

    Os dias, meses, seguem-se assim. A satisfação é enorme, do tamanho da sua barriga. É tão bom ver as casinhas passando pela janela. Alice acorda rindo, com vontade, toma café, come pão. Todos a tratam bem. Muitos a olham. Está tudo indo muito bem.

    Quando, numa noite, em casa, ela começa a sentir dores no quadril, e a barriga fica dura. A dor vem de tempo em tempo, cada vez mais frequente. Seu osso parece que vai quebrar de tanto que abre involuntariamente. Uma água começa a jorrar por suas pernas como se ela estivesse urinando, involuntariamente. Alice se dá conta de que chega ao fim os tempos de assento. Ela odeia hospital. Viu sua tia morrer no hospital porque ninguém fez nada para ajudá-la. Alice não pensa em morrer. Nunca pensou sobre a morte. Ela deita na cama, começa a fazer força, como a moça da novela fez uma vez. Ela pensa, é fácil, é só fazer força. Ela faz. Dói demais. Ela acha que vai morrer, mesmo sem saber como se morre. Dói demais. E agora, que desespero. Ela empurra o máximo que pode. Na força absurda que faz, acaba defecando na própria cama. Ela nem pensa a respeito. Ela só que expelir aquilo que a faz sentir aquela dor. E ela expele. Ela sente uma bola em sua vagina. Coloca a mão, tenta puxar e fazer força ao mesmo tempo. A bola sai devagar e emperra. Ela puxa mais, tenta enfiar os dedos na vagina, onde há alguma coisa presa. São os ombros. Como uma alavanca, ela usa os dedos para trazer os ombros pra fora. E assim, exausta, faminta, ela tira aquilo dela. Nem sabe o que fazer. Cansada, ofegante, olha o corpo durante um tempo, atônita. Só agora ela se deu conta de que havia mesmo algo dentro dela. Não sabe o que fazer, está cansada, com fome. Levanta, meio cambaleante, vai até a cozinha, que é quase no mesmo cômodo, ainda com as entranhas cheias de sangue e procura algo pra comer. Não tem nada. Nunca tem. Alice não janta.

   Ela volta para o quarto e vê aquilo em cima da cama. Está com fome. Aquilo que saiu de dentro dela deixou-a com fome. Ela alimentou aquilo durante todo esse tempo e aquilo a deixou com fome. Ela deu vida àquilo. É seu. É sua cria. É sua carne. Carne. Alice pega o pequeno corpo, leva-o até a cozinha, coloca-o em cima da pia e corta-o. Coloca água no fogo, com alho, cebola, caldo de carne, sal. Coloca a carne dentro da panela. Tampa-a. Cozinha por uns dez minutos. Tira. Come. E vai dormir.

   Alice acorda quando o despertador toca, mas não levanta. Desliga-o. Levanta à nove horas da manhã com fome. Toma café, come pão. Liga pro trabalho. Explica. Liga a tevê. Deita no sofá. E ali permanece o dia inteiro. Esses desenhos são tão legais. Nos noticiários, uma criança foi encontrada numa lata de lixo, dentro de um banheiro público. No programa de auditório, a mãe reclama para a apresentadora que o esposo abusa da filha, é um sem-vergonha, e todas as palavras chulas que ela pronuncia às duas horas da tarde.

   E os dias de Alice são assim, durante os seis meses que ela fica em casa, sob licença maternidade. Levanta da cama, come pão, toma café, deita no sofá, liga a tevê e só sai de lá pra ir ao banheiro, e dormir na cama, maquinalmente. A filha planejou o assassinato dos pais, e quem executou foi o seu namorado. A ave corta o rabo do jacaré e coloca-o na panela de pressão, depois serve para o jacaré comer. O pai joga a filha do sexto andar do prédio, do apartamento onde eles moram, suspeita de uma rede de pedofilia.

   Na última semana, Alice lembra de que tem que voltar ao trabalho, não tem jeito. No primeiro dia após sua licença, ela acorda um minuto antes de o despertador tocar. E a angústia, dia após dia, volta, junto com o cansaço esquecido. Quatro horas e meia de ida, quatro horas e meia de volta. Ela quer ver a casinhas, o túnel de novo. Ela quer sentar. É tão bom sentar.

   E numa sexta-feira, ela volta ao pagode. Bebe quatro maria-moles. Um cara aparece ao seu lado e ela sorri pra ele com ar malicioso. Com ar de quem deixa a entender que é sexo que ela quer mesmo. Ele tenta beijá-la e sente nojo, raiva. “Aqui não.” Dessa vez, eles vão até a casa dela. Ele tenta não reparar na bagunça e no mau cheiro. Ele só que meter nessa magrelinha, porque só tem pego aquelas puta gorda da arcus. Ele tenta beijar ela de novo e ela o empurra. Ele a agarra, enfia a mão entre as pernas delas e aperta com força a sua vagina. Pega a mão dela e coloca-a no seu pênis. Ela só quer que isso seja rápido. Ela puxa-o pra cama, deita, tira as calças, abre as pernas. Ele começa o serviço. Mete até gozar. Ela, com a cara de lado, só quer se livrar dessa situação o quanto antes. Ela chega a preferir o trem. Ele goza. Ele sai.

   Três semanas passam, na angústia diária e nada lhe acontece. Menstruou. Nem pra isso o desgraçado prestou. Alice aguarda a próxima sexta, ansiosa. Na sexta, no pagode, ela vê o cara que a levou para o barraco dele. Ela o olha fixamente, já com cinco maria-mole na cabeça. Ela deseja que ele olhe para ela. Ela deseja. E deseja. E nada. Outro chega perto, fala algo. Ela tem pressa, vai esse mesmo.

   Depois do sexo indiferente, o aguardo. Resolver ter fé. Acredita que dessa vez vai. E foi. Está grávida de novo. As pessoas nem estranham, ninguém presta muita atenção em nada mesmo. E o assento volta, o conforto, as casinhas, as pessoas educadas, a satisfação e a barriga.

   É chegada a hora e Alice corre pra casa. Com dor, deitada na cama, já sabe o que vai passar. Força. Força muito, mas não tem tanta dificuldade. Ela puxa com as mãos. Sai. Ela levanta, vai até a cozinha, sem pensar põe a panela no fogo e tudo mais. Ela come novamente.

   Os meses seis meses se passam com a mesma indiferença e a mesma tevê e as mesmas notícias. A mesma rotina retorna. A angústia, as sextas-feiras, as tentativas. E mais uma vez, ela consegue. Está grávida de novo. Ela faz tudo maquinalmente de novo. Ela até sente na boca o gosto doce daquela carne. O macio daquela carne. Sua carne, sua cria. Ela dá a vida, ela toma. Alice toma a carne que ela deu. Mal pode esperar.

   Mas ela começa a ver crianças nos trens, muitas. Ela tem a impressão de que aquelas crianças olham demais pra ela. De que aquelas crianças sabem de alguma coisa. A sua barriga se mexe demais. Chutes, socos, vira de um lado, vira de outro. Aquilo já sabe qual será o seu fim. Aquilo já se sente desejado, mas não da maneira que ele quer ser. Alice começa a sentir um incômodo inexplicável. Não tem ideia do que isso seja, e não consegue ficar bem. Uma revolta dentro de si, uma vontade de viver que não é sua.

   Um dia, já sem suportar, na estação de Guaianases, na ida ao trabalho, ela pensa:

“Minha cria. Eu te dei vida. Eu te dou a morte. Você me pede a sua vida. Eu não tenho vida pra te dar. Eu não tenho nada pra te dar. Sei que não conseguirei tirar uma vez mais a sua vida, mas também não conseguirei conviver com a sua desmorte. Aqui fora não é lugar pra você. Você não nasceu pra viver, assim como a sua mãe, meu filho. Eu comi os seus irmãos e ia te comer também. Mas já que você me julga, vamos acabar logo com isso.”
   Alice, com tamanha barriga, já na beira da plataforma, ao avistar o trem chegando, se lança sem mais pensar em nada, com as mãos na barriga e os olhos fechados. Tenta não olhar, mas olha, tenta não sentir, mas sente. Por alguns segundos, ainda tem alguma consciência. Ouve os gritos, o trem parando, pessoas vomitando, pessoas pulando na linha do trem, e o cheiro da sua carne, o calor da sua carne. O fim da sua angústia.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Mosaico


Mosaico.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O calor queima, e o frio também

A metáfora dá mais pano pra manga do que isso que escrevi, mas resume bem.


Não sou morna. Assumo o caos que há em mim. Assumo o caos que há, que reina. O caos reina.

Não, não sou morna. Combato diariamente a hipocrisia que há em mim e, de vez em quando, a que há em você.
Não, eu não sou morna. Não finjo que aprendo enquanto fingem que me ensinam.
Eu sou o caos. E você também é. Por mais que tente esconder, ele está aí, mal guardado, naquele lugar obscuro que desde a sua infância, nunca mais você visitou.
Eu sei, às vezes, você até chega a enxergá-lo no espelho, mas você desvia o seu olhar. Diga um olá para ele de vez em quando. Porque não tem jeito, um dia ele cansa dessa escuridão.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Mosaico

O mosaico está na minha cabeça, está na minha vida.
Preciso te explicar a teoria do mosaico.
Preciso externar esse mosaico.


Um dia.

Silêncio.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Daremos uma festa para um palhaço que não foi convidado


O circo acabou. As personagens não buscam o divertimento, o riso ou a alegria. Elas buscam quase desesperadamente, através do consumo, o conforto. Não há motivos para rir. O riso é apenas um espasmo. É preciso acreditar em uma nova forma de salvação. O palhaço perdeu seu emprego. Nós estamos perdendo os nossos. É obrigação do palhaço receber nossa arrogância. O palhaço não é engraçado. Cabe ao palhaço engolir nossa fúria. Daremos uma festa para um palhaço que não foi convidado. Já não nos imrpota a felicidade, importa apenas parecermos felizes. Dividimos o mesmo espaço. Estamos no mesmo barco, que sabidamente afunda. Só nos resta uma boa poltrona para que possamos, de forma confortável, aguardar que as águas nos libertem. O palhaço enfia a cabeça no balde e a mantém submersa por cinco minutos. A água não mais purifica, apenas abafa o mundo. Às personagens resta apenas lembranças. Vagas, imprecisas, que não se compartilham. Dividem o mesmo espaço, mas não o mesmo tempo.


MUTARELLI, Lourenço. O teatro das sombras. Devir Livraria.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O patrão nosso de cada dia

Eu quero amor
da flor de cactus
Ela não quiz

Eu dei-lhe a flor
De minha vida
Vivo agitado

Eu já não sei se sei
De tudo ou quase tudo
Eu só sei de mim
De nós
De todo mundo

Eu vivo preso
a sua senha
Sou enganado

Eu solto o ar
No fim do dia
Perdí a vida

Eu já não sei se sei
De nada ou quase nada
Eu só sei de mim
Só sei de mim
Só sei de mim

O patrão nosso
de cada dia
Dia...
após dia...
O patrão nosso de cada dia...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Carta aberta dos ateus ao presidente Lula

Caro presidente




O senhor chegou ao poder carregado pela bandeira de uma sociedade mais justa e mais inclusiva. O uso da palavra "excluídos" no vocabulário das políticas públicas tem o mérito de nos lembrar que as conquistas de nossa sociedade devem ser estendidas a todos, sem exceção. Sim, devemos incluir os negros, incluir as mulheres, incluir os miseráveis, incluir os homossexuais. Mas, presidente, também é preciso incluir ateus e agnósticos, e todos os demais indivíduos que não têm religião.

Infelizmente, diversas declarações pessoais suas, assim como políticas do seu governo, têm deposto em contrário. Ontem mesmo o senhor afirmou que há "muitos" ateus que falam sobre a divindade da mitologia cristã quando estão em perigo. Ora, quando alguém diz "viche", é difícil imaginar que esteja pensando em uma mulher palestina que se alega ter concebido há mais de dois mil anos sem pai biológico. Com o tempo, algumas expressões se cristalizam na língua e perdem toda a referência ao seu significado estrito. Esse é o caso das interjeições que são religiosas em sua raiz, mas há muito estão secularizadas. Se valesse apenas a etimologia, não poderíamos nem falar "caramba" sem tirar as crianças da sala.

Sua afirmação é a de quem vê “muitos” ateus como hipócritas ou autocontraditórios, pessoas sem força de convicção que no íntimo não são descrentes. Nós, membros da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos, não temos conhecimento desses ateus, e consideramos que essa referência a tantos de nós é ofensiva e preconceituosa. Todos os credos e convicções têm sua generosa parcela de canalhas e incoerentes; utilizar os ateus como exemplo particular dessas características negativas, como se fôssemos mais canalhas e mais incoerentes, é uma acusação grave que afronta a nossa dignidade. E os ateus, presidente, também têm dignidade.



Duas semanas atrás, o senhor afirmou que a religião pode manter os jovens longe da violência e delinqüência e que “com mais religião, o mundo seria menos violento e com muito mais paz”. Mas dizer que as pessoas religiosas são menos violentas e conduzem mais à paz é exatamente o mesmo que dizer que as pessoas menos religiosas são mais violentas e conduzem mais à guerra. Então, presidente, segundo o senhor, além de incoerentes e hipócritas, os ateus são criminosos e violentos? Não lhe parece estranho que tantos países tão violentos estejam tão cheios de religião, e tantos países com frações tão altas de ateus tenham baixíssimos índices de criminalidade? Não é curioso que as cadeias brasileiras estejam repletas de cristãos, assim como as páginas dos escândalos políticos? Algumas das pessoas com convicções religiosas mais fortes de que se tem notícia morreram ao lançar aviões contra arranha-céus e se comprazeram ao negar o direito mais básico do divórcio a centenas de milhões de pessoas. Durante séculos.


O mundo realmente tinha mais paz e menos violência quando havia mais religião? O despotismo dos soberanos católicos na Europa medieval e a crueldade dos feitores e senhores de escravos no Brasil-colônia vieram de pessoas religiosas em um mundo amplamente religioso que violentava povos e mentes em nome da religião. O mundo não tinha mais paz nem menos violência naquela época, como o sabem muito bem os negros e índios.

Não eram católicos os generais da ditadura contra a qual o senhor lutou, e o seu exército de torturadores? Não haveria um crucifixo nas paredes do DOPS onde o senhor foi preso? A base dos direitos individuais invioláveis pela qual o senhor tanto lutou são as democracias modernas, seculares e laicas, e não os regimes religiosos. Tanto a geografia como a história dão exemplos claros de que mais religião não traz mais paz nem menos violência.


A prática de diminuir, ofender, desumanizar, descaracterizar e humilhar grupos sociais é antiga e foi utilizada desde sempre para justificar guerras, perseguição e, em uma palavra, exclusão. Presidente, por que é que o senhor exclui a nós, ateus, do rol de indivíduos com moralidade, integridade e valores democráticos?

No Brasil, os ateus não têm sequer o direito de saberem quantos são. O Estado do qual eles são cidadãos plenos designa recenseadores para ir até suas casas e lhes perguntar qual é sua religião. Mas se dizem que são ateus ou agnósticos, seus números específicos lhes são negados. Presidente, através de pesquisas particulares sabemos que há milhões de ateus no país, mas o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que publica os números de grupos religiosos que têm apenas algumas dezenas de membros, não nos concede essa mesma deferência. Onde está a inclusão se nos é negado até o direito de auto-conhecimento? Esse profundo desrespeito é um fruto evidente da noção, que o senhor vem pormenorizando com todas as letras, de que os ateus não merecem ser cidadãos plenos.


Presidente, queremos aqui dizer para todos: somos cidadãos, e temos direitos. Incluindo o de não sermos vilipendiados em praça pública pelo chefe do nosso Estado, eleito com o voto, também, de muitos ateus, que agora se sentem traídos.
Presidente, não podemos deixar de apontar que somente um estado verdadeiramente laico pode trazer liberdade religiosa verdadeira, através da igualdade plena entre religiosos de todos os matizes, assim como entre religiosos e não-religiosos de todos os tipos, incluindo ateus e agnósticos. Infelizmente, seu governo não apenas tem sido leniente com violações históricas da laicidade do Estado brasileiro, como agora espontaneamente introduziu o maior retrocesso imaginável nessa área que foi a assinatura do acordo com a Sé de Roma, escorado na chamada lei geral das religiões.


Ambos os documentos constituem atentado flagrante ao art. 19 da Constituição Federal, que veda “relações de dependência ou aliança com cultos religiosos ou igrejas”. E acordos, tanto na linguagem comum como no jargão jurídico, são precisamente isso: relações de aliança. Laicidade, senhor presidente, não é ecumenismo. O acordo com Roma já era grave; estender suas benesses indevidas a outros grupos não diminui a desigualdade, apenas a aumenta. Nós não queremos privilégios: queremos igualdade e o cumprimento estrito da lei, e muitos setores da sociedade, religiosos e laicos, têm exatamente esse mesmo entendimento.


Além de violar nossa lei maior, a própria idéia da lei geral das religiões reforça a política estatal de preterir os ateus sempre e em tudo que lhes diz respeito como ateus. Com que direito o Estado que também é nosso pode ser seqüestrado para promover qualquer religião em particular, ou mesmo as religiões em geral? Com que direito os religiosos se apossam do dinheiro dos nossos impostos e do Estado que também é nosso para promover suas crenças particulares? Religião não é, e não pode jamais ser política pública: é opção privada.


O Estado pertence a todos os cidadãos, sem distinção de raça, cor, idade, sexo, ideologia ou credo. Nenhum grupo social pode ser discriminado ou privilegiado. Esse é um princípio fundamental da democracia. Isso é um reflexo das leis mais elementares de administração pública, como o princípio da impessoalidade. Caso aquelas leis venham de fato integrar-se ao nosso ordenamento jurídico, os ateus se juntarão a tantos outros grupos que irão ao judiciário para que nossa realidade não volte ao que era antes do século retrasado.

Presidente, por tudo isso será que os ateus não merecem inclusão sequer em um pedido de desculpas?






quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Outro devaneio


E se deixássemos a mediocridade?

E se deixássemos de nos fazer de loucos pra viver?

Porque, você sabe, né, tem muita gente se fazendo de louca pra viver.

Ó, não estou dizendo que é condenável... Num mundo tão medíocre, cada um, senão todos, tem suas vávulas, suas pequenas indulgências.

Deve ser isso: todo mundo sabe que vai morrer mesmo, então segue se matando aos poucos. Uns mais rápido que outros, com medo da morte sempre. Mas cometendo os erros mais ridículos, os erros mais medíocres, e colocando o nome de quem não tem nada a ver no meio. Mas precisamos falar alguma coisa, o silêncio incomoda, precisamos, precisamos....
...a loucura.


Mas, ó, se a carapuça serve, servimos bem para servir sempre.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

sonhos agastados

Não, não sou eu, é alguém mais que sofre.
Eu não teria podido. Panos negros de lã cubram
O que se passou,
E levem embora os lampiões...
.............................Noite.
Anna Akhmatova

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Fantasmas

Por mais que morram; por mais que tenham deixado tudo para trás; suas coisas, sua vida, seus ardores, seus gatos e tudo o mais que achava e que ainda acha que ama, e a falta que acham que faz, não perceberam ainda que estão mortos. E acabou. Chega dessa história de terror mal contada, mal amada, mal terminada. Não que aqui na terra seja história somente feliz, mas é história verdadeira. Entendeu? Verdadeira, pro seu penar. E mais nada.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

agasta-se

A gente se perde em tanta ideia, tanta criação.
E o tempo passa e a gente passa com ele.
É clichê, eu sei. Mas é um clichê forte demais pra passar em branco.
Um dia as ideias param aqui.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A garota no trem

Ela parecia tão comum. Mas sua expressão, seus gestos, me chamaram a atenção. Minha tristeza é jamais saber o que se passava na sua cabeça naquele instante. Parecia tão longe dali. Parecia tão deslocada, anacrônica até. Não queria que ela se afastasse de mim. Como não foi possível e como dali eu não ia conseguir obter pensamento algum, resolvi registrá-la. Ei-la. O bom é que ela pode ser do jeito que eu quiser. Ela pode ser uma garota legal. Pode gostar de mim. Ela pode sair comigo. Levo-a no bolso. Ela não vai se afastar de mim. Não vai se assustar com esse meu jeito. Essa é a minha garota. Agora que eu já a tenho, espero não encontrá-la mais no trem. A mim interessava apenas os seus pensamentos e talvez a sua personalidade. Agora que tenho a sua imagem e ela pode ser do jeito que eu bem entender, desço na próxima estação e não se fala mais nisso.

Mediocridade, passei no vestibular. Mas a faculdade, ela é particular.

O que se chama de consciência limpa? Ir à igreja aos domingos, passear no shopping com o (a)namorado(a)? Lavar a louça pra sua mãe? Devem resumir mesmo a vida das pessoas medíocres. Vão se casar, ter filhos e só. E a consciência limpa. Um dia está bem, outro dia está mal. E assim a gente segue no deixa a vida me levar. Mas não comenta nada, porque eu não gosto de pagode. E assim, segue-se enganando-se, como diz uma outra música: A vida não é tão boa, mas eu tenho meus paliativos (carros, bolsas, remédios), segue-se na esperteza, no jeitinho, na brasilidade. E assim, se segue a vidinha inútil, com uma certeza medíocre de que está fazendo tudo certo. Mesmo quando o travesseiro te avisa que não é bem assim. Erro daqui, erro de lá, mas que importam as pessoas? Que importa sua conduta, seu sentimento? Que importa a ética? Isso não existe, não é mesmo? Importa a audiência, e a promoção social: olha pra mim, eu sou legal. O que importa é o expediente, é o fechamento do jornal. E viva a mediocridade! Porque o reconhecimento é a sobremesa.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Surgi

Ele nasceu. Da necessidade. Da extrema necessidade de mostrar-se ao mundo. Ei-lo.