quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Meia metáfora



   Um dia eu tive uma filha. Ela era tudo pra mim. Ela não saiu de mim, mas era como se tivesse. Eu era criança com ela; eu era a melhor tia-mãe do mundo. E a vida nos separou, eu me separei, e ela sentiu muito, chorou doído, de um choro que eu jamais vou me esquecer. Ainda carrego a cicatriz no peito, do rasgo causado por aquele choro... Mas a vida tinha que seguir. Justamente por ela não ter saído de mim, por mais que eu quisesse, não tinha o direito de tê-la pra mim. Ela jamais seria pra sempre e oficialmente minha (sim, eu era jovialmente egoísta). Pois a verdadeira dona fazia questão de me lembrá-lo. Isso não diminuiu o amor que eu lhe tinha, pelo contrário. Mas me fez acordar para algo mais (ou me fechar para algo julgado menos); esse triste fato me encorajou a tomar a decisão de ir embora. E eu fui.   
    E o tempo passou, e eu me lembrava dela como um filho natimorto. Um filho perdido do qual eu sempre senti falta.
    E aí, após alguns anos, eu a reencontrei, não pessoalmente. Nós conversamos, nos atualizamos. Conversas sobre as trivialidades, evitando tocar em assuntos delicados. Comecei a perceber que ela se divertia intimamente, pois aos meus comentários sobre as nossas brincadeiras, inesquecíveis para mim, ela respondia que nada lembrava. Aquilo foi de uma frustração tamanha; era como se a visse me olhar com um sorriso ingênuo a segurar um punhal. Foi então que a minha confissão da falta que ela me fazia, da saudade que eu lhe tinha, suscitou na pergunta rancorosa: Então por que fostes embora? Senti o fel de cada de palavra. Palavras que saíram de uma criança. Isso não é uma metáfora: ela realmente era uma criança. E eu lhe perguntei: Não te disseram? Ao que ela respondeu: Sim, mas quero ouvir de você. Senti o punhal ser enterrado em meu peito, senti a crueldade vindo dela no nó da minha garganta, que jamais imaginei sentir... uma criança. A minha criança... meu natimorto que resolvi ressuscitar. Antes a tivesse comido como a Alice o fez. A desmorte é pior que a morte. Com a morte se convive melhor, porque é fato, acabou, não tem mais volta.
    Explicado o motivo, mais crueldade. Não bastou pr’aquela criança apunhalar o meu coração. Era preciso girar o punhal: Foi quase igual ao que me contaram. Eu, num grito de misericórdia: Mas e você, o que achou de minha partida? Quer conversar? Quer desabafar?. E ela, num meio riso: Me poupe. E o punhal girou. E ela os chamou, e todos riram de mim, da minha dor, do meu rasgo exposto.
    Causei-lhe dor ao ir embora; acho que a dor do seu choro doído somou-se ao que lhe disseram sobre a minha partida. E aquela criança teve a sua vingança.
    Criança não tem pudor, não discerne entre cruel e não cruel. Tudo é lúdico para a criança. Se ela vai perceber o que fez quando o imaginário acabar, jamais saberemos, mas é o que a minha crueldade reflexiva espera.
    Eu ressuscitei meu natimorto e ele quis levá-lo consigo. Não devia tê-lo acordado.
    Não acordem, não despertem o amor.
    Mas eis-me, guerreiro caído, quase morto como o meu bebê um dia esteve. Mas me ergo, sei de onde eu vim, apesar das investidas de tentar me fazer esquecer. Sei do que é feito o meu sangue. Afirmo isso para mim mesma. Levanta-te, mulher. Mostra-te a mulher que sempre foi. Ergue a cabeça e segue. Teu verdadeiro filho a espera lá na frente.

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