Um dia eu tive uma filha. Ela era tudo pra mim. Ela não saiu de mim, mas era como se tivesse. Eu era criança com ela; eu era a melhor tia-mãe do mundo. E a vida nos separou, eu me separei, e ela sentiu muito, chorou doído, de um choro que eu jamais vou me esquecer. Ainda carrego a cicatriz no peito, do rasgo causado por aquele choro... Mas a vida tinha que seguir. Justamente por ela não ter saído de mim, por mais que eu quisesse, não tinha o direito de tê-la pra mim. Ela jamais seria pra sempre e oficialmente minha (sim, eu era jovialmente egoísta). Pois a verdadeira dona fazia questão de me lembrá-lo. Isso não diminuiu o amor que eu lhe tinha, pelo contrário. Mas me fez acordar para algo mais (ou me fechar para algo julgado menos); esse triste fato me encorajou a tomar a decisão de ir embora. E eu fui.
E o tempo passou, e eu me lembrava dela como um filho natimorto. Um filho perdido do qual eu sempre senti falta.
E aí, após alguns anos, eu a reencontrei, não pessoalmente. Nós conversamos, nos atualizamos. Conversas sobre as trivialidades, evitando tocar em assuntos delicados. Comecei a perceber que ela se divertia intimamente, pois aos meus comentários sobre as nossas brincadeiras, inesquecíveis para mim, ela respondia que nada lembrava. Aquilo foi de uma frustração tamanha; era como se a visse me olhar com um sorriso ingênuo a segurar um punhal. Foi então que a minha confissão da falta que ela me fazia, da saudade que eu lhe tinha, suscitou na pergunta rancorosa: Então por que fostes embora? Senti o fel de cada de palavra. Palavras que saíram de uma criança. Isso não é uma metáfora: ela realmente era uma criança. E eu lhe perguntei: Não te disseram? Ao que ela respondeu: Sim, mas quero ouvir de você. Senti o punhal ser enterrado em meu peito, senti a crueldade vindo dela no nó da minha garganta, que jamais imaginei sentir... uma criança. A minha criança... meu natimorto que resolvi ressuscitar. Antes a tivesse comido como a Alice o fez. A desmorte é pior que a morte. Com a morte se convive melhor, porque é fato, acabou, não tem mais volta.
Explicado o motivo, mais crueldade. Não bastou pr’aquela criança apunhalar o meu coração. Era preciso girar o punhal: Foi quase igual ao que me contaram. Eu, num grito de misericórdia: Mas e você, o que achou de minha partida? Quer conversar? Quer desabafar?. E ela, num meio riso: Me poupe. E o punhal girou. E ela os chamou, e todos riram de mim, da minha dor, do meu rasgo exposto.
Causei-lhe dor ao ir embora; acho que a dor do seu choro doído somou-se ao que lhe disseram sobre a minha partida. E aquela criança teve a sua vingança.
Criança não tem pudor, não discerne entre cruel e não cruel. Tudo é lúdico para a criança. Se ela vai perceber o que fez quando o imaginário acabar, jamais saberemos, mas é o que a minha crueldade reflexiva espera.
Eu ressuscitei meu natimorto e ele quis levá-lo consigo. Não devia tê-lo acordado.
Não acordem, não despertem o amor.
Mas eis-me, guerreiro caído, quase morto como o meu bebê um dia esteve. Mas me ergo, sei de onde eu vim, apesar das investidas de tentar me fazer esquecer. Sei do que é feito o meu sangue. Afirmo isso para mim mesma. Levanta-te, mulher. Mostra-te a mulher que sempre foi. Ergue a cabeça e segue. Teu verdadeiro filho a espera lá na frente.
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