quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Lei Estadual nº 12225/06



   Alice acorda um minuto antes de o relógio despertar, três horas. A angústia já começa antes mesmo de levantar da cama, é segunda-feira e ela sabe o que a espera. A rotina é feita de cor, sabe até quantos passos são entre uma ação e outra: escovar os dentes, trocar de roupa, comer pão, tomar café, pegar a bolsa, fechar a casa. Uma casa de dois cômodos alugada na favela da praça Amador Avelar, ao lado da linha F de trem e 15 minutos a pé da estação São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo.

   Mas Alice prefere andar até a avenida Marechal Tito e pegar a lotação Cohab II para descer na estação Guaianases, uma outra linha de trem que vai para a estação da Luz, no centro de São Paulo. Lá Alice pode pegar outro trem, o Francisco Morato, descer na próxima estação, a Barra Funda, pegar o trem Itapevi, descer na estação Osasco, pegar o trem Jurubatuba e descer na estação Morumbi e andar apenas mais dez minutos até chegar ao seu local de trabalho. Ao total são quatros horas e vinte e cinco minutos.

   Uma luxuosa mansão no bairro do Morumbi. Com seus 25 quartos, sendo 15 suítes, amplo hall de entrada que se divide em duas escadas com piso de mármore, corrimão banhado a ouro, cozinha industrial, três salões de jogos, duas bibliotecas, quatro escritórios, dez lavabos, corredores secretos, corredores que não acabam mais, piscinas, pra todas as idades e pra todos os gostos, um bosque particular. É a maior mansão da região, com um sistema de segurança impecável. Alice faz parte do quadro de empregados da empresa que cuida de todo o patrimônio, entre os cinquenta funcionários da mansão: quinze seguranças, quatro mordomos, dez empregadas domésticas, cinco cozinheiras, cinco jardineiros, uma administradora e ainda cinco funcionários que cuidam do Departamento Pessoal. Alice é do grupo das empregadas domésticas. Uma mansão que fica praticamente vazia a maior parte do tempo. São cinquenta pessoas para atender a dez pessoas, nos dias normais: o diretor executivo, a mulher, os três filhos, dois irmãos do executivo e mais três crianças, sobrinhos do executivo. Mas a exigência de tantos funcionários é da mulher, que se sente importante tendo que arrumar tarefas pra tanta gente, paranoica com a segurança excessiva da casa. Nos finais de semana costumam vir os parentes, convidados, mas nunca todos os quartos são usados. A comida sempre estraga, mas a maioria é levada a tempo pelos funcionários.

   E Alice já chegou à estação Guaianases. Sente-se mal nesse momento, a chegada do trem, porque é a hora em que a multidão aproxima-se para garantir a entrada. As pessoas começam a se empurrar, os homens, mais fortes, empurram quem estiver na frente. Diversas são as brigas por causa do assento. Alice não sabe o que fazer: se entra na briga, sempre se machuca e dificilmente pega um lugar, mas se espera a manada entrar, tem que se apertar na porta, aonde cada vez mais chegam pessoas empurrando e todos se apertam de qualquer maneira, e ninguém consegue se mexer. Num espaço onde normalmente caberiam duas pessoas, ficam sete ou mais. As mulheres nem pensam mais em assédio, não há nem condições de reclamar do volume do cabrunco apertando atrás, ao lado, à frente. Essa é angústia diária de Alice, que passa nove horas (quatro horas e meia de ida, mais a volta) sendo esmagada por centenas de pessoas.

   Alice vê os bancos cinzas do assento preferencial e escuta o aviso sonoro programado: “Respeite os assentos preferenciais. Eles são identificados pela cor cinza e adesivo”. Vê o adesivo: o gordo, o aleijado, a grávida, o idoso, a mulher com a criança. Vê muitos desses chegarem aos assentos, apesar do enorme esforço contra a multidão, e sentarem-se confortavelmente.

   Alice tem 32 anos, solteira, sem filhos, nem ambições, nem sonhos. A família mora na cidade de Caldeirão Grande do Piauí, quase divisa com Pernambuco. Veio com a tia pra São Paulo há 17 anos, arrumar dinheiro pra ajudar os pais. A tia morreu num assalto quando Alice tinha 16 anos, e na mesma casa mora desde que chegou, e trabalha na mesma mansão que a tia trabalhava. Não quis voltar pro Nordeste, estava acostumada demais com a cidade, mesmo que aqui tenha a mesma miséria de lá, só que de uma maneira diferente.

   Os dias passam com a mesma mecânica, as mesmas repetições. E Alice, no aperto dos trens, continua a olhar os adesivos dos assentos preferenciais. Ela começa a pensar nas possibilidades no banco dos privilegiados. Ela se imagina idosa, sentando-se no seu assento cinza, mas sabe que demorará muito, e não pode esperar tanto, sem falar que estará no fim mesmo. De que adianta sentar agora, se já passou a vida inteira em pé e lhe resta tão pouco tempo de vida? Não, não dava pra esperar.

   Aí ela olha para o aleijado. Bem que o destino poderia causar-lhe um acidente, onde a pobre perdesse um pé ou uma mão. Se fosse o caso, ela mesma poderia cortar um membro, aprendeu alguma coisa num cursinho técnico de enfermagem que fez há muitos anos. Mas não seria nada bom ser uma aleijada, seria infortúnio demais se arrastar por nove horas diárias, não é uma boa ideia. Tem o obeso. Porém o dinheiro que Alice ganha mal dá pra mistura, vai tudo pro aluguel, que só aumenta, fora o que ela perde quando é roubada, o que acontece costumeiramente, seja em qual ponto da cidade ela estiver. Como ela poderia engordar com tão pouco dinheiro? A comida que sobra na mansão é sempre levada pelos pais de família que precisam alimentar sete, oito bocas. Todos considerariam um absurdo uma magrela sem família levar tanta comida pra casa. Com que direito? É, não dá.

   Depois tem a grávida. Alice não tem namorado, não tem ninguém. Já se acostumou a viver só, namorado só atrapalha. Toda sexta, ela vai num pagode do boteco perto de casa, mas só pra beber e arrumar uma trepada. E Alice se previne, porque filho e doença só atrapalham. Pensou que a gravidez também não seria uma boa ideia. Alice percebe que não há jeito, mas pelo menos a primeira viagem chega ao fim sem que ela perceba, e a manada a empurra para fora do trem.

   As semanas passam e a angústia continua. Alice não consegue se conformar com tamanho sofrimento.

   É sexta-feira, dia de ir pro samba. Não que isso a alegrasse, mas ela não trabalha no sábado, e pode beber pra esquecer o trem. Sentada na cadeira do bar, acostumara-se a sentir como que um balanço, semelhante ao balanço do trem, isso nem a incomoda mais. O barulho do samba lhe é também indiferente. O grupo toca ao seu lado, mas lhe parece longe. Ela sempre bebe maria-mole, porque é barata, chapa mais rápido e ela não precisa acabar-se na pinga. Fica olhando pro nada, não dá atenção pra ninguém, até certo momento, em que a bebida já faz efeito, atende ao primeiro que chega perto. Não fica alta, mas se propõe a qualquer proposta. E então, saem de lá e vão para o barraco do rapaz. Já em cima da cama, ainda com o olhar de indiferença, enquanto o desconhecido tira a sua roupa, Alice imagina a satisfação de ir sentada no trem. O balanço do trem que permanece na sua mente, junto ao vento que entra pela pequena janela do quarto, três horas da madrugada e um calor de 29 graus. Alice decide não se prevenir. Não para pra pegar a camisinha na bolsa e o rapaz não toca no assunto. E assim, Alice pensa que seu filho poderia ajudá-la a ir sentada no trem.

   Uma esperança começa a brotar-lhe no peito. Acorda bem disposta na segunda, no justo horário em que o despertador toca, toma café com gosto e nem sente angústia alguma ao pegar a lotação lotada. Alice poderia, um dia, sentar-se durante a viagem.

   Três semanas se passaram e Alice percebe algo diferente no seu corpo. Os enjoos começam e então ela marca consulta no ginecologista, quer ter certeza. Mais duas semanas, na consulta, o médico a examina e, por precaução, pede um exame. Duas semanas depois, ela pega o exame. Está grávida. Mal sai do posto de saúde, pega a primeira lotação que passa, não vê nem o itinerário. Ela só quer sentar. Pro seu azar, nesse horário, não há tanto movimento, não para a lotação que Alice havia pegado. O assento reservado está vazio.

   No dia seguinte, Alice acorda um minuto antes de o despertador tocar. Suas ações maquinais e matinais estão diferentes. Ela está ansiosa para sair de casa. Na esquina onde a lotação para, entra e logo diz ao cobrador: “Estou grávida”. Alice é magrela e apenas uma pequena saliência aparece no abdômen. Ao que o cobrador responde: “Fala aê com os passagêro”. Alice mostra seu exame, segurando com os dedos crispados o papel na altura da visão do cobrador. Apesar da escuridão das três e meia da manhã, o cobrador consegue enxergar o papel impresso em impressora matricial, a tinta fraca e a assinatura do médico.

    Então, o cobrador grita para os passageiros que a moça está grávida e pede pra que alguém dê lugar pra ela. Um homem levanta, apesar de olhar pra Alice de modo desconfiado, aliás, a essa altura, todos olham um pouco desconfiados. Mas era uma atitude por demais inesperada. Ninguém ali faria isso se estivesse grávido ou grávida de poucos meses, pois sabiam que todos desconfiariam. E foi por isso que ninguém reclamou. E Alice sentou sossegada no assento reservado.

   Dali, ela olha o cinza escuro do bairro onde mora. Nos pontos de ônibus, vê um grande número de pessoas se apertando para subir na lotação, que já não cabe ninguém. Ela não está em pé, a satisfação é tamanha que ela não contém um riso. Ainda que pobre, encavalado, um sorriso, que ela tenta esconder, mas não consegue. Aqueles que não haviam participado da reivindicação da moça, por ter subido em pontos posteriores, a olham com cara feia, julgando-a. Então, Alice coloca a mão na barriga, até estufa-a para dar mais aparência.

    Na estação de trem é ainda melhor. Alice nem sofre por esperar as pessoas se matarem para entrar no trem. Ela os observa, atrás da multidão, espera todos entrarem, esbaforidos. Os bancos reservados são os últimos a serem ocupados, porque ninguém quer sentar-se e ter que dar lugar à primeira velhinha que aparece. Alguns, com mais cara de pau, sentam-se e logo fingem dormir, alheios a qualquer pessoa que encosta. Ainda assim, existem os mais caras de pau, recalcados é a palavra certa, que, não conformados com a cara de pau do que dorme, e querendo que fossem eles a estar ali naquela mamata, apenas avistam alguma pessoa preferencial, já chamam-na e acorda o dorminhoco. E não tem jeito, tem que levantar. E Alice logo se senta no seu assento reservado, máxima do seu direito, segurando o papel na mão.

    Uma velha aparece. Alice não levanta e todos a olham com censura, até que alguém diz que isso é uma falta de educação. Mas Alice espera, não diz palavra, decide que só vai falar quando a pessoa dirigir-se diretamente a ela e reclamar. É o que acontece. O papel é mostrado, mas as reclamações só aumentam: “Mas nem dá pra ver a barriga”, diz uma. “É no começo da gravidez que mais se passa mal”, argumenta outra. As pessoas não estão interessadas em saber se Alice passa mal ou não, só querem que Alice saia do lugar. “Não. Estou grávida. É meu direito, assim como o dela, não estão vendo na placa?”. Não há o que fazer, todos a olham torto, mas não há o que fazer. Outra pessoa levanta de um assento não reservado e dá lugar à senhora, que agradeço, mas a essa altura não quer mais sentar.

    No começo foi assim até Alice fazer a sua carteirinha de gestante. Pelo menos na estação da Luz, ela ia até o primeiro vagão, aonde há um espaço para as pessoas com necessidades especiais. Depois do terceiro mês, quando a barriga aparece, Alice nem se preocupa mais. Entra, aproxima-se do assento preferencial e logo o lugar é cedido.

    Os dias, meses, seguem-se assim. A satisfação é enorme, do tamanho da sua barriga. É tão bom ver as casinhas passando pela janela. Alice acorda rindo, com vontade, toma café, come pão. Todos a tratam bem. Muitos a olham. Está tudo indo muito bem.

    Quando, numa noite, em casa, ela começa a sentir dores no quadril, e a barriga fica dura. A dor vem de tempo em tempo, cada vez mais frequente. Seu osso parece que vai quebrar de tanto que abre involuntariamente. Uma água começa a jorrar por suas pernas como se ela estivesse urinando, involuntariamente. Alice se dá conta de que chega ao fim os tempos de assento. Ela odeia hospital. Viu sua tia morrer no hospital porque ninguém fez nada para ajudá-la. Alice não pensa em morrer. Nunca pensou sobre a morte. Ela deita na cama, começa a fazer força, como a moça da novela fez uma vez. Ela pensa, é fácil, é só fazer força. Ela faz. Dói demais. Ela acha que vai morrer, mesmo sem saber como se morre. Dói demais. E agora, que desespero. Ela empurra o máximo que pode. Na força absurda que faz, acaba defecando na própria cama. Ela nem pensa a respeito. Ela só que expelir aquilo que a faz sentir aquela dor. E ela expele. Ela sente uma bola em sua vagina. Coloca a mão, tenta puxar e fazer força ao mesmo tempo. A bola sai devagar e emperra. Ela puxa mais, tenta enfiar os dedos na vagina, onde há alguma coisa presa. São os ombros. Como uma alavanca, ela usa os dedos para trazer os ombros pra fora. E assim, exausta, faminta, ela tira aquilo dela. Nem sabe o que fazer. Cansada, ofegante, olha o corpo durante um tempo, atônita. Só agora ela se deu conta de que havia mesmo algo dentro dela. Não sabe o que fazer, está cansada, com fome. Levanta, meio cambaleante, vai até a cozinha, que é quase no mesmo cômodo, ainda com as entranhas cheias de sangue e procura algo pra comer. Não tem nada. Nunca tem. Alice não janta.

   Ela volta para o quarto e vê aquilo em cima da cama. Está com fome. Aquilo que saiu de dentro dela deixou-a com fome. Ela alimentou aquilo durante todo esse tempo e aquilo a deixou com fome. Ela deu vida àquilo. É seu. É sua cria. É sua carne. Carne. Alice pega o pequeno corpo, leva-o até a cozinha, coloca-o em cima da pia e corta-o. Coloca água no fogo, com alho, cebola, caldo de carne, sal. Coloca a carne dentro da panela. Tampa-a. Cozinha por uns dez minutos. Tira. Come. E vai dormir.

   Alice acorda quando o despertador toca, mas não levanta. Desliga-o. Levanta à nove horas da manhã com fome. Toma café, come pão. Liga pro trabalho. Explica. Liga a tevê. Deita no sofá. E ali permanece o dia inteiro. Esses desenhos são tão legais. Nos noticiários, uma criança foi encontrada numa lata de lixo, dentro de um banheiro público. No programa de auditório, a mãe reclama para a apresentadora que o esposo abusa da filha, é um sem-vergonha, e todas as palavras chulas que ela pronuncia às duas horas da tarde.

   E os dias de Alice são assim, durante os seis meses que ela fica em casa, sob licença maternidade. Levanta da cama, come pão, toma café, deita no sofá, liga a tevê e só sai de lá pra ir ao banheiro, e dormir na cama, maquinalmente. A filha planejou o assassinato dos pais, e quem executou foi o seu namorado. A ave corta o rabo do jacaré e coloca-o na panela de pressão, depois serve para o jacaré comer. O pai joga a filha do sexto andar do prédio, do apartamento onde eles moram, suspeita de uma rede de pedofilia.

   Na última semana, Alice lembra de que tem que voltar ao trabalho, não tem jeito. No primeiro dia após sua licença, ela acorda um minuto antes de o despertador tocar. E a angústia, dia após dia, volta, junto com o cansaço esquecido. Quatro horas e meia de ida, quatro horas e meia de volta. Ela quer ver a casinhas, o túnel de novo. Ela quer sentar. É tão bom sentar.

   E numa sexta-feira, ela volta ao pagode. Bebe quatro maria-moles. Um cara aparece ao seu lado e ela sorri pra ele com ar malicioso. Com ar de quem deixa a entender que é sexo que ela quer mesmo. Ele tenta beijá-la e sente nojo, raiva. “Aqui não.” Dessa vez, eles vão até a casa dela. Ele tenta não reparar na bagunça e no mau cheiro. Ele só que meter nessa magrelinha, porque só tem pego aquelas puta gorda da arcus. Ele tenta beijar ela de novo e ela o empurra. Ele a agarra, enfia a mão entre as pernas delas e aperta com força a sua vagina. Pega a mão dela e coloca-a no seu pênis. Ela só quer que isso seja rápido. Ela puxa-o pra cama, deita, tira as calças, abre as pernas. Ele começa o serviço. Mete até gozar. Ela, com a cara de lado, só quer se livrar dessa situação o quanto antes. Ela chega a preferir o trem. Ele goza. Ele sai.

   Três semanas passam, na angústia diária e nada lhe acontece. Menstruou. Nem pra isso o desgraçado prestou. Alice aguarda a próxima sexta, ansiosa. Na sexta, no pagode, ela vê o cara que a levou para o barraco dele. Ela o olha fixamente, já com cinco maria-mole na cabeça. Ela deseja que ele olhe para ela. Ela deseja. E deseja. E nada. Outro chega perto, fala algo. Ela tem pressa, vai esse mesmo.

   Depois do sexo indiferente, o aguardo. Resolver ter fé. Acredita que dessa vez vai. E foi. Está grávida de novo. As pessoas nem estranham, ninguém presta muita atenção em nada mesmo. E o assento volta, o conforto, as casinhas, as pessoas educadas, a satisfação e a barriga.

   É chegada a hora e Alice corre pra casa. Com dor, deitada na cama, já sabe o que vai passar. Força. Força muito, mas não tem tanta dificuldade. Ela puxa com as mãos. Sai. Ela levanta, vai até a cozinha, sem pensar põe a panela no fogo e tudo mais. Ela come novamente.

   Os meses seis meses se passam com a mesma indiferença e a mesma tevê e as mesmas notícias. A mesma rotina retorna. A angústia, as sextas-feiras, as tentativas. E mais uma vez, ela consegue. Está grávida de novo. Ela faz tudo maquinalmente de novo. Ela até sente na boca o gosto doce daquela carne. O macio daquela carne. Sua carne, sua cria. Ela dá a vida, ela toma. Alice toma a carne que ela deu. Mal pode esperar.

   Mas ela começa a ver crianças nos trens, muitas. Ela tem a impressão de que aquelas crianças olham demais pra ela. De que aquelas crianças sabem de alguma coisa. A sua barriga se mexe demais. Chutes, socos, vira de um lado, vira de outro. Aquilo já sabe qual será o seu fim. Aquilo já se sente desejado, mas não da maneira que ele quer ser. Alice começa a sentir um incômodo inexplicável. Não tem ideia do que isso seja, e não consegue ficar bem. Uma revolta dentro de si, uma vontade de viver que não é sua.

   Um dia, já sem suportar, na estação de Guaianases, na ida ao trabalho, ela pensa:

“Minha cria. Eu te dei vida. Eu te dou a morte. Você me pede a sua vida. Eu não tenho vida pra te dar. Eu não tenho nada pra te dar. Sei que não conseguirei tirar uma vez mais a sua vida, mas também não conseguirei conviver com a sua desmorte. Aqui fora não é lugar pra você. Você não nasceu pra viver, assim como a sua mãe, meu filho. Eu comi os seus irmãos e ia te comer também. Mas já que você me julga, vamos acabar logo com isso.”
   Alice, com tamanha barriga, já na beira da plataforma, ao avistar o trem chegando, se lança sem mais pensar em nada, com as mãos na barriga e os olhos fechados. Tenta não olhar, mas olha, tenta não sentir, mas sente. Por alguns segundos, ainda tem alguma consciência. Ouve os gritos, o trem parando, pessoas vomitando, pessoas pulando na linha do trem, e o cheiro da sua carne, o calor da sua carne. O fim da sua angústia.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Mosaico


Mosaico.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O calor queima, e o frio também

A metáfora dá mais pano pra manga do que isso que escrevi, mas resume bem.


Não sou morna. Assumo o caos que há em mim. Assumo o caos que há, que reina. O caos reina.

Não, não sou morna. Combato diariamente a hipocrisia que há em mim e, de vez em quando, a que há em você.
Não, eu não sou morna. Não finjo que aprendo enquanto fingem que me ensinam.
Eu sou o caos. E você também é. Por mais que tente esconder, ele está aí, mal guardado, naquele lugar obscuro que desde a sua infância, nunca mais você visitou.
Eu sei, às vezes, você até chega a enxergá-lo no espelho, mas você desvia o seu olhar. Diga um olá para ele de vez em quando. Porque não tem jeito, um dia ele cansa dessa escuridão.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Mosaico

O mosaico está na minha cabeça, está na minha vida.
Preciso te explicar a teoria do mosaico.
Preciso externar esse mosaico.


Um dia.

Silêncio.